O Fantástico acompanha, na Amazônia, o batizado de um indiozinho. Na cerimônia, a tribo promove um ritual alucinógeno para chamar os espíritos da floresta.
É uma cerimônia de batismo onde índios consomem folha da coca e um cipó alucinógeno. É assim que eles chamam os espíritos da floresta para proteger o novo membro da tribo, um indiozinho recém-nascido. A reportagem é de Marcelo Canellas. Um ritual proibido, com chás alucinógenos, ervas estimulantes, benzeduras e invocação de espíritos da floresta está prestes a ser retomado nos confins da Amazônia. “Vai acontecer depois de 40 anos. É duro isso”, diz o líder tuyuka Higino Tenório. A proibição veio da Igreja, dos missionários católicos que evangelizaram os índios no século passado. “Tudo do índio, danças, vestimentas, a própria língua, era considerado como uma influência satânica”, lembra o líder tuyuka. Mas a Igreja mudou. O misticismo indígena já não é mais pecado. Higino Tenório agora pode nos conduzir pelas corredeiras do Rio Tiquié, apontando o melhor caminho. Ele é o líder dos tuyukas, um dos 23 povos da Cabeça do Cachorro, no noroeste do estado do Amazonas, a região de maior diversidade étnica do Brasil. Partindo de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, são três dias e meio de lancha, e 374 curvas no interminável ziguezague do Rio Tiquié, até a aldeia Tuyuka de São Pedro, na fronteira com a Colômbia. “Quando índio estica beiço e diz: ‘bem aí’”, afirma o guia Durvalino Fernandes. O que é perto e o que é longe depende do tamanho da cachoeira. “Vamos descarregar tudo de novo para o outro lado”, diz o guia Maximiliano Menezes. Das vezes em que a lancha segue quase vazia para não virar, enquanto damos a volta a pé, carregando uma tonelada de mantimentos e equipamento, para embarcar em um ponto mais adiante, menos encachoeirado. Enfim, a aldeia Tuyuka. Em segundos, indiozinhos surgem do nada, descendo o barranco. Somos os únicos convidados de fora. As boas-vindas são oferecidas na grande maloca da aldeia. Os tuyukas adoram rir das imitações que fazem de si próprios, das tribos vizinhas, dos brancos e - por que não? - da equipe do Fantástico.
A aldeia está agitada. Há quatro décadas não ocorre o que haverá aqui esta noite.
Yeriponá baseriwi em Tuyuka significa ritual de dar o nome. Há 40 anos, quando foi interrompida, era a festa mais importante e motivo mais do que suficiente para interromper a rotina da comunidade para dar as boas-vindas a um novo tuyuka. O bebê que vai retomar a tradição nasceu há dez dias e, como o próprio nome da festa já diz, servirá para batizá-lo da maneira como será chamado daqui para frente.
O nome até já foi escolhido: “Vai ser Buá, que é um tipo de flauta sagrada”, conta o pai de Buá, Geraldino Tenório. “Sem epadu não tem ritual”, decreta o líder Higino Tenório. Epadu é o nome indígena da folha de coca. “Isso é amargo, não pode você morder aqui. Amarga”, afirma. São cerca de 500 pés plantados e colhidos pelos próprios índios. “O branco que plantar isso vai preso, porque ele não usa no ritual. Ele estraga a humanidade. Homem branco conseguiu tirar alcalóide e inventou esse negócio de cocaína”, diz Higino Tenório. Os índios também trazem da mata folhas de embaúba que serão queimadas até virar cinza. As folhas de epadu são torradas e socadas no pilão. Vão virar um pó verde que será misturado às cinzas da embaúba.
A mistura é batida, peneirada em uma bolsa, que parece um coador de pano. O resultado é um pó mais fino, com propriedades energéticas e anestésicas. Os índios consomem aos punhados. A boca fica dormente. O sono vai embora. A ideia é justamente ficar acordado durante os dois dias da festa. “A gente vai lembrando o que esqueceu. A gente vai pensando até lembrar tudo. Reaviva a memória”, explica o benzedor Raimundo Tenório. É o epadu que abre caminho para a ação do carpi, o alucinógeno feito com a casca deste cipó, macerado no pilão, misturado à água fria, coado, e bebido pelos sábios da aldeia. Um chá amargo, indigesto. Mas, dizem os índios, capaz de revelar espíritos invisíveis. “Você tem visões, vê cobras, cobras, tudo pintado. Vários tipos de cobra. Vê os triângulos”, descreve o índio Tuyuka José Barreto Ramos. As visões são reproduzidas nas paredes da grande maloca. Os desenhos das visões dos sábios das gerações passadas também vão para o rosto e para o corpo, inclusive dos convidados. Ninguém é obrigado a se pintar, mas seria assim, digamos, uma certa desfeita participar da festa e não se deixar pintar. É como comparecer de camiseta quando se exige smoking. Ninguém pode comer nada. Apenas epadu. E beber, só carpi e caxiri, a bebida fermentada de mandioca, com teor alcoólico semelhante ao da cerveja. Só pode ser consumido o que os pajés benzerem, inclusive o tabaco e o rapé. O defumador passa de meia em meia hora. Uma espécie de ladainha com a narrativa do mito tuyuka da criação da humanidade é entoada de vez em quando. Pedro, o mais velho ancião da aldeia, abre a caixa sagrada de adornos: colares de dentes de onça, flautas de osso de anta. Os adornos são como prolongamentos do corpo dos índios e servem para transferir poderes dos animais dos quais foram extraídos para quem os estiver usando. Os cantos falam sobre os animais, as plantas, as visões, os espíritos da floresta. A esta altura, Buá dorme tranquilamente na grande maloca. O pajé benze uma cuia com uma frutinha, o buiuiú. É para atrair ao suco da fruta os seres sobrenaturais que trazem saúde, inteligência e felicidade. O pai põe um pouquinho do sumo na boca do bebê. Pedro invoca os espíritos da natureza para que protejam o garoto. Ao receber a benção do avô, Buá ganha o nome tuyuka que recupera uma tradição perdida há 40 anos. Todo o valor simbólico que os índios dão a uma vida humana. Toda a ternura de uma cerimônia de afeto, em que o bebê passa de colo em colo, por todas as mulheres da família, como maneira de dizer a ele que será cuidado e acarinhado pela comunidade inteira. A anciã da aldeia dá a benção final, sob a emoção da mãe e a alegria de todos os tuyukas. O indiozinho, que se chama Buá, não chorou. Durante os dois dias de seu longo batizado, apenas dormiu e mamou, enquanto o povo celebrava sua chegada.
A aldeia está agitada. Há quatro décadas não ocorre o que haverá aqui esta noite.
Yeriponá baseriwi em Tuyuka significa ritual de dar o nome. Há 40 anos, quando foi interrompida, era a festa mais importante e motivo mais do que suficiente para interromper a rotina da comunidade para dar as boas-vindas a um novo tuyuka. O bebê que vai retomar a tradição nasceu há dez dias e, como o próprio nome da festa já diz, servirá para batizá-lo da maneira como será chamado daqui para frente.
O nome até já foi escolhido: “Vai ser Buá, que é um tipo de flauta sagrada”, conta o pai de Buá, Geraldino Tenório. “Sem epadu não tem ritual”, decreta o líder Higino Tenório. Epadu é o nome indígena da folha de coca. “Isso é amargo, não pode você morder aqui. Amarga”, afirma. São cerca de 500 pés plantados e colhidos pelos próprios índios. “O branco que plantar isso vai preso, porque ele não usa no ritual. Ele estraga a humanidade. Homem branco conseguiu tirar alcalóide e inventou esse negócio de cocaína”, diz Higino Tenório. Os índios também trazem da mata folhas de embaúba que serão queimadas até virar cinza. As folhas de epadu são torradas e socadas no pilão. Vão virar um pó verde que será misturado às cinzas da embaúba.
A mistura é batida, peneirada em uma bolsa, que parece um coador de pano. O resultado é um pó mais fino, com propriedades energéticas e anestésicas. Os índios consomem aos punhados. A boca fica dormente. O sono vai embora. A ideia é justamente ficar acordado durante os dois dias da festa. “A gente vai lembrando o que esqueceu. A gente vai pensando até lembrar tudo. Reaviva a memória”, explica o benzedor Raimundo Tenório. É o epadu que abre caminho para a ação do carpi, o alucinógeno feito com a casca deste cipó, macerado no pilão, misturado à água fria, coado, e bebido pelos sábios da aldeia. Um chá amargo, indigesto. Mas, dizem os índios, capaz de revelar espíritos invisíveis. “Você tem visões, vê cobras, cobras, tudo pintado. Vários tipos de cobra. Vê os triângulos”, descreve o índio Tuyuka José Barreto Ramos. As visões são reproduzidas nas paredes da grande maloca. Os desenhos das visões dos sábios das gerações passadas também vão para o rosto e para o corpo, inclusive dos convidados. Ninguém é obrigado a se pintar, mas seria assim, digamos, uma certa desfeita participar da festa e não se deixar pintar. É como comparecer de camiseta quando se exige smoking. Ninguém pode comer nada. Apenas epadu. E beber, só carpi e caxiri, a bebida fermentada de mandioca, com teor alcoólico semelhante ao da cerveja. Só pode ser consumido o que os pajés benzerem, inclusive o tabaco e o rapé. O defumador passa de meia em meia hora. Uma espécie de ladainha com a narrativa do mito tuyuka da criação da humanidade é entoada de vez em quando. Pedro, o mais velho ancião da aldeia, abre a caixa sagrada de adornos: colares de dentes de onça, flautas de osso de anta. Os adornos são como prolongamentos do corpo dos índios e servem para transferir poderes dos animais dos quais foram extraídos para quem os estiver usando. Os cantos falam sobre os animais, as plantas, as visões, os espíritos da floresta. A esta altura, Buá dorme tranquilamente na grande maloca. O pajé benze uma cuia com uma frutinha, o buiuiú. É para atrair ao suco da fruta os seres sobrenaturais que trazem saúde, inteligência e felicidade. O pai põe um pouquinho do sumo na boca do bebê. Pedro invoca os espíritos da natureza para que protejam o garoto. Ao receber a benção do avô, Buá ganha o nome tuyuka que recupera uma tradição perdida há 40 anos. Todo o valor simbólico que os índios dão a uma vida humana. Toda a ternura de uma cerimônia de afeto, em que o bebê passa de colo em colo, por todas as mulheres da família, como maneira de dizer a ele que será cuidado e acarinhado pela comunidade inteira. A anciã da aldeia dá a benção final, sob a emoção da mãe e a alegria de todos os tuyukas. O indiozinho, que se chama Buá, não chorou. Durante os dois dias de seu longo batizado, apenas dormiu e mamou, enquanto o povo celebrava sua chegada.
“O branco que plantar isso vai preso, porque ele não usa no ritual. Ele estraga a humanidade. Homem branco conseguiu tirar alcalóide e inventou esse negócio de cocaína”, diz Higino Tenório.
ResponderExcluirUm ritual que a mais de 40 anos praticamente foi bloqueado pelos "brancos" por deduzirem ser um ritual ilícito frente as normas doutrinárias e dogmáticas da Igreja, agora é posto à tona fazendo-se divulgar na mídia uma cultura outrora quase esquecida.
Isso é uma prova viva de que nossas raízes ainda existem, logicamente sendo necessário ainda, algumas quebras de paradigmas, visto que as comunidades indígenas estão à mercê dos estereótipos conturpados.
Mas o que é de fato lícito ou ilícito dentro da cultura de um determinado âmbito social?